Segundo a lenda, o boto cor de rosa tem o poder de se transformar num bonito homem vestido de roupa branca. O Boto cor-de-rosa que sai nos rios da Amazônia a noite para encontrar as mulheres. Vai a festas e bailes em busca de jovens mulheres bonitas. Esse boto, tenta seduzir as mulheres e depois convencer elas a dar um passeio no rio. Após seduzi-las, ele sai correndo e se joga no primeiro rio que encontrar. Nessa hora é que todos se dão conta de que não era um rapaz qualquer, mas o boto! (MARTINS, 2014).
Por Belaunde (2015):
A lenda:
Em 1954, no Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo (1993) registrou que, na beira dos grandes rios navegáveis da Amazônia Brasileira, existia a lenda popular de que os botos habitam grandes cidades debaixo da napa dos rios. Nesse mundo subaquático, eles possuem tecnologias modernas e seus corpos são belos e sedutores. Quando sobem à superfície, causam intensa paixão na pessoa que os vê e o desejo de segui-los no fundo das águas pode levar as vítimas de seu amor ao afogamento. Sua aparência fora da água é a mesma de homens e mulheres brancos, de cabelos loiros, elegantemente vestidos e sedutores. Gostam de dançar nos bares, beber e namorar. A única coisa que os delata é o cheiro de peixe que exalam da cabeça e tentam cobrir com o chapéu. Mas, quando o encantamento se desfaz, seus chapéus são raias, seu dinheiro, algas e seus rostos, focinhos de boto.
Contextualizando:
Mais recentemente desenvolveram estudos das narrativas pessoais de experiências vividas com os “botos virando gente” na beira do rio. Segundo Lima, estes relatos contemporâneos têm como pano de fundo a história da colonização da Amazônia, em especial as transformações demográficas de extinção e mistura dos povos indígenas e a chegada de migrantes que deram origem aos povos ribeirinhos na época da borracha. A autora se vale da teoria do perspectivismo amazônico para argumentar que os relatos da transformabilidade dos botos em humanos e a poderosa alteridade do mundo subaquático são prova da persistência do pensamento indígena entre as populações ribeirinhas [...] Existem dois tipos de boto na bacia amazônica, o boto cinza, e o vermelho ou rosa (Inia geoffroyensis).
O Xamanismo na Amazônia:
O Cor de rosa é percebido como um poderoso xamã do mundo subaquático. Dizem que, quando uma mulher quebra as restrições do resguardo e vai tomar banho no rio, os botos vermelhos sentem o cheiro de seu sangue de longe e vêm excitados à superfície para namorar com ela. O cheiro do sangue menstrual e o desejo sexual que ele inspira nos botos cor-de-rosa operariam a transformação do boto em humano.
Assim como o sangue que sai dos genitais das mulheres excita os botos, os órgãos genitais cortados dos botos agem como afrodisíacos para os humanos. Essa é uma ideia presente nos grandes rios navegáveis da Amazônica Peruana, em geral, e especialmente elaborada no xamanismo Cocama (Kukama) e Shipibo-Konibo e no vegetalismo mestiço e ribeirinho das bacias do Marañón e Ucayali.
Entre os Shipibo-Konibo, por exemplo, os lábios dos genitais dos botos fêmeas são cortados e usados para fazer puzangas para unir os casais (SAÉZ et al., 2003). Luna (1986, p. 86) também menciona que o pênis cortado de um boto macho é usado durante as sessões xamânicas para chamar o espírito do boto. “O espírito do boto amarra-se à mulher. A vítima é presa de um desejo sexual insaciável, que ela tentará aplacar fazendo amor com todos os homens que ela encontrar.” Karsten (1964, p. 197 apud Belaunde 2015)
[...] Como mencionado, esses parceiros oníricos e xamânicos têm horror ao odor do sangue menstrual e de pós-parto, do sêmen e dos fluidos sexuais em geral. O respeito do resguardo é instrumental para poder relacionar-se com eles...
A quebra do resguardo, portanto, tem consequências dramáticas e múltiplos efeitos de abandono.
Acredito que a elaboração pelas cosmologias indígenas do choque histórico da época da borracha na figura do boto cor-de-rosa assinala os múltiplos efeitos de abandono gerados pela colonização. Portanto, o boto e seus efeitos de abandono estão associados ambos os fenômenos: ao consumo sexual das mulheres indígenas pelos homens de fora vindos para trabalhar na economia extrativista, por um lado e, por outro, às mudanças das práticas reprodutivas que os levam a deixar de lado a prática do resguardo. E Enfim! tem muito, mais coisa pra ler caso queira ver tudo clique aqui.
Na obra, El amor de los delfines (O amor dos botos), pintada em 2008, Pablo Amaringo, mestre vegetalista mestiço, de origem Kechua Lamista, nascido no Ucayali, nos mostra sua visão das cidades subaquáticas dos botos.
O estilo gráfico e as cores são característicos da corrente de pintura visionária que ele iniciou e propagou através da escola Usko Ayar, fundada em Pucallpa em 1988 (VILLAR, 2013 et al.). Como as narrativas de encontros com os botos, esta é uma pintura testemunhal que conta por meio de imagens a experiência vívida do xamã. A obra revela que no mundo debaixo da napa dos rios, como no nosso mundo, há também rios, e estes têm profundidade, superfície e céu. No fundo do rio do mundo subaquático, o xamã, acompanhado de sua esposa, vai procurar os filtros de amor que deseja obter dos poderosos botos. Juntos, eles sopram ao redor do ambiente subaquático e, através desta técnica xamânica de transmissão de poderes, acionam forças por meio do fluxo das águas. A pintura nos faz ver as dobras do cosmos dos rios, contidos por debaixo dos rios de onde flui a paixão.
É impressão minha, ou nessa imagem acima eu vi enorme semelhança com a descrição do efeito de Ayahuasca ??
Magalhães (2013) aponta que rios e mares são considerados "águas vivas" no folclore brasileiro de origem indígena e africana, e são elementos de adoração pela antiguidade clássica (Cascudo,s.d., p. 780). Pajés em comunidades ribeirinhas realizam rituais religiosos e de cura evocando entidades da água. Dependendo da queixa, eles passam cachaça, a "água ardente", pelo corpo pois, de acordo com os xamãs isso contribui para que o objetivo do ritual seja alcançado.
A autora relata também, que mulheres associadas à figura do boto são descritas como loucas, pois apresentam coragem, poder força, liberdade e independência. Uma delas que é associada à magia do boto é Leonardinha de Orminda, conhecida como poderosa Pajé do rio Arari. Diz que o ofício de pajé na Amazônia, é atribuído ao homem (classificados a comportamentos masculinos), enquanto as atividades que envolvem cura e magia são (ou eram né) designadas às mulheres, como benzedeira, rezadeira, puxadeira e parteira, entre outras. Assim mulheres pajés são as vezes malvistas pela comunidade e classificadas como feiticeiras ou Matintapereira (significado). Assim caboclos disseram que a força, agitação e rebeldia da feiticeira surgiu da relação sexual que teve com o boto nas pedras onde ocorre a pororoca (significado).
As Pajés (cujo nomes são citados no artigo) que sofreram o estigma do boto ao exercerem o xamanismo, começaram a propagar a valorização da natureza e justificarem azares, doenças naturais e sobrenaturais por reação dos encantados ao desrespeito à fauna, hidrografia e vegetação. A preservação da biodiversidade da Amazônia e o enaltecimento na geografia da região são temas frequentemente nos livros das pajés: Lendas da Amazônia (2000), Recado do Papagaio (s.d) e O mundo místico dos carunas e a revolta de sua ave (1998) e a valorização da natureza também é destacada nas canções das xamãs (PINHEIRO, 2011 apud MAGALHÃES, 2013).
Lembramos que:
A Amazônia não se restringe à floresta e nem todas as comunidades ribeirinhas propagam as mesmas crenças e lendas. Há mitos e lendas diferentes de diferentes culturas que narram questões de formas diferentes.
Fonte: Magalhães (2013)
Referências:
BELAUNDE, Luisa Elvira. Resguardo e sexualidade (s): uma antropologia simétrica das sexualidades amazônicas em transformação. Cadernos de Campo (São Paulo, 1991), v. 24, n. 24, p. 538-564, 2015.
MAGALHÃES, Gilzete Passos et al. Os espelhos dos rios: dimensões simbólicas da relação de gênero na lenda Amazônica o Boto. 2013. Dissertação (Mestrado). 2013.
MARTINS, Marcelo. Lendas da Amazônia: As crianças vão adorar conhecer as lendas da floresta amazônica. 2014.
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