Os Kaxinawá acreditam que os verdadeiros xamãs (chamados de mukaya), ou seja, aqueles que tinham dentro de si a muka – substância amarga e xamânica – não existem mais. Isso, porém, não impede que outras formas de xamanismo, menos poderosas, mas igualmente eficientes, sejam praticadas. O xamanismo é uma prática quase exclusivamente desenvolvida pelos homens, cujo objetivo é conhecer e curar através do contato com o lado yuxin da realidade. Para que esse contato se estabeleça, é necessário haver uma transformação corporal e de consciência; é preciso atingir um estado alterado de consciência para ver e interagir com a yuxindade. (LAGROU, 2004, on-line).
O yuxin pode se manifestar tanto como uma força vital quanto como alma ou espírito com personalidade e vontade próprias. Yuxin pode significar também uma imagem fiel, uma réplica de um ser vivo, por isso uma foto pode ser yuxin e um retrato bem feito também:
Yuxin é espírito ou alma, mas estas traduções não cobrem bem seu significado. Pelo que pude observar no uso da palavra yuxin pelos Kaxinawá, yuxin não é algo sobrenatural ou sobre-humano, localizado fora da natureza ou fora do humano. O espiritual ou a força vital, yuxin, permeia todo fenômeno vivo na terra, na água e nos céus. Por ter essa yuxindade em comum, a comunicação, a transformação e a percepção dos yuxin pelo olhar humano tronam-se possíveis (LAGROU, 1996, p.197- 198 – grifos no original).
Os Kaxinawá são também conhecidos por Cashinauá, Caxinauá e Huni Kuin. Pertencentes à família linguística Pano e habitam a floresta tropical no leste peruano, do pé dos Andes até a fronteira com o Brasil, no estado do Acre e sul do Amazonas, abarcando respectivamente a área do Alto Juruá e Purus e o Vale do Javari. No Peru, as aldeias kaxinawá se encontram ao longo dos rios Purus e Curanja; as aldeias acreanas se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus (GUESSE, 2014).
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A pessoa é constituída por um corpo carnal habitado por vários yuxin. “O corpo acordado e saudável está com todos os seus yuxin presentes”. Os dois yuxin principais são: Yuxin do olho: ou alma do olho (bedu yuxin) ou ainda verdadeira alma (yuxin kuin); tem origem e destino divinos e sua ligação com o corpo é efêmera; é o mais vital dos yuxin e a pessoa morre quando o yuxin do olho sai para sempre.
Yuxin do corpo: ou alma do corpo (yuda yuxin); é um aspecto da substância do corpo, que o envolve como uma pele exterior e é percebido como uma aura, uma luminosidade; está ligada à sombra e ao reflexo da pessoa; depende do corpo para existir, já que sem ele a sombra se torna um monstro, uma ameaça. “O espírito do corpo cresce junto ao corpo e sua força depende do aprendizado verbal e consciente do indivíduo durante a vida. Seu destino é de desaparecer na medida em que o corpo morto se desfaz” (LAGROU, 1996, p. 207).
Além desses dois, o corpo humano ainda possui outros yuxin menores, secundários: espírito do sonho (nama yuxin), yuxin das fezes, da urina, dentre outros.
A atividade do xamã de se racionar com os yuxin é indispensável para o bem estar da comunidade; os Kaxinawá acreditam que a causa de todo mal ou doença esteja no lado yuxin da realidade, portanto a função do xamã como mediador é fundamental. Para entrar em contato com a yuxindade, os Kaxinawá têm quatro caminhos. O primeiro deles é a prática coletiva dos rituais, nos quais os yuxin entram em cena em forma corporal; homens e mulheres se mascaram e representam os yuxin no drama ritual, materializando a relação de toda a comunidade com a yuxindade.
Os outros caminhos são individuais e o contato com a yuxindade acontece na viagem do yuxin do olho (bedu yuxin) que, por sua vez, pode se dar de três formas: quando a pessoa sonha, quando cheira rapé e quando toma a bebida alucinógena nixi pae.
Deve ficar claro que todos os homens adultos que tenham coragem e queiram podem cheirar o rapé e tomar o nixi pae, não apenas os xamãs. Para os Kaxinawá, o nixi pae tem a capacidade de aumentar a consciência e a percepção do lado espiritual e invisível do mundo. No entanto, o uso dessas substâncias pelos xamãs tem o objetivo primeiro da cura, o que não é possível para um homem “comum”:
Nixi pae significa “cipó forte, que embebeda”, e se refere à beberagem feita do cozimento do cipó Banisteriopisis caapi com a folha da Psichotria. Outros termos usados pelos Kaxinawá para se referir ao nixi pae são huni (gente), dami (transformação), dunuã isun (urina da sucuri).
O uso dessa substância psicoativa é muito difundido entre os povos indígenas na Amazônia e deu origem ao Santo Daime entre os seringueiros do Acre. No Acre, a bebida, quando tomada fora do contexto do Daime, é chamada de cipó, no Peru de ayahuasca, na Colômbia de yagé (LAGROU, 1996, p. 198 – grifos no original).
Yunxidade é uma categoria que sintetiza bem a cosmovisão xamânica dos Kaxinawá, uma visão que não considera o espiritual (yuxin) como algo sobrenatural e sobre-humano, localizado fora da natureza e fora do humano. O espiritual ou a força vital (yuxin) permeia todo o fenômeno vivo na terra, nas águas e nos céus.
O uso da ayahuasca, considerado privilégio do xamã em muitos grupos amazônicos, é uma prática coletiva entre os kaxinawa, praticada por todos os homens adultos e adolescentes que desejam ver "o mundo do cipó". O mukaya seria aquele que não precisa de nenhuma substância, nenhuma ajuda exterior para se comunicar com o lado invisível da realidade. Mas todos os homens adultos são um pouco xamãs na medida que aprendem a controlar suas visões e interações com o mundo dos yuxin.
O xamã tanto pode causar a doença quanto curá-la; o xamã pode entrar em contato com os yuxin e pedir-lhes que matem ou curem uma pessoa. Durante o sonho ou quando está em transe (sob o efeito do rapé ou do cipó), a viagem do yuxin do olho do xamã pode ir em busca da cura de um caso concreto, mas também podem realizar viagens exploratórias, para entender o mundo, adquirir conhecimento e saber as causas das doenças, exploram os caminhos que o yuxin do olho dos mortos terão que trilhar até chegar ao céu e fortalecem as relações com mundo espiritual pelo bem-estar da comunidade (LAGROU, 2004, on-line).
Nesta primeira narrativa, além da prática de cheirar o rapé de tabaco (muito importante para os kaxinawá, como explicado anteriormente), que intitula o texto, ainda estão presentes os seguintes costumes: prática de dormir na rede (comumente utilizada até os dias de hoje nas aldeias); prática do roçado; prática da caça; prática da pesca (neste caso, pesca-se o bodó nas águas do igarapé) prática da luta, com a utilização de algumas armas (neste caso, a flecha e a borduna); costume de tomar banho no igarapé; dança e canto; estudo para ser pajé (estudo bastante específico e considerado um grande desafio para os aprendizes; este estudo tem características que podem variar de povo para povo); práticas alimentares (neste caso são citados o nambu cozido na caçarola de barro e as bananas cozidas com peixe bodó).
Sobre o que foi citado acima "O xamanismo é uma prática quase exclusivamente desenvolvida pelos homens" há um outro artigo sobre uma Pajé, mulher, que conta um pouco de sua visão, aqui: "Boto Rosa e o Xamanismo na Amazônia"
Referências:
GUESSE, Érika Bergamasco. Shenipabu Miyui: literatura e mito. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – UnEsP, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara 425 f. 2014.
LAGROU, Elsje Maria. Kaxinawá, 2004. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaxinawa/print>. Acesso em: 19 abr. 2019.
LAGROU, Elsje Maria. Xamanismo e representação entre os Kaxinawá. In: LANGDON, E. Jean Matteson (Org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: UFSC,
1996.
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