⚠️ IMPORTANTE: CAPRICORNUS contém alguns filmes raros, que tiveram legenda sincronizada, outros traduções para o português, deu trabalho pra tá aqui ent vai roubar conteúdo da puta que te pariu sem dar os créditos. ~ Siga a gente! Os filmes tem limite de visualização mensal, caso não consiga, tentar próximo mês.

Doutor Sádico (Em Delirium) Por Carlos Patricio

Imagem: Livro Delirium (2014).
Hoje, depois de anos finalmente resolvi escrever sobre o conto de um amigo, o conheço já a bastante tempo e posso afirmar sua simpatia, tenho seu livro dedicado em mãos, e posso dizer o quando é uma leitura ótima para passar o tempo, para ler no avião, no carro, no mais escuro de seu quarto! 

Desordens. Distúrbios. INSÂNIAS! Este é o tema de Delirium. Nesta coletânea de contos o autor preza, sobretudo, pela diversidade e a originalidade. Pois em que outro livro você encontraria realidade virtual, experiência com alucinógenos, assassinos sádicos, debates sobre crenças e religião, um desabafo a la Kafka, e, até mesmo, os infortúnios de uma fofoca? Uma culinária diversificada e bem temperada para todos os paladares.

Diante de tal insânia, o blog Capricornus Cruentum irá divulgar o conto chamado Doutor Sádico ! Ao final, o link para entrar em contato com o autor e para adquirir o livro com dedicatória e desconto !

“... está sendo considerado o ano com o maior número de sequestros na história da Áustria! Superando até mesmo 1995, quando dezenas de crianças haviam sido não só sequestradas, como também violentadas e assassinadas. A diferença é que, desta vez, os adultos também...”

Klose desligou a TV. No entanto, tarde demais, pois Elizabeth já ouvira o suficiente para que começasse a chorar e a implorar ao pai.
— Papai! Por favor, não me deixe sozinha! Estou com medo — soluçou.
— Acalme-se, meu amor. Você está assustada porque é seu primeiro dia de aula, mas logo irá se acostumar. Eu prometo!
— Mas papai... E se aparecer algum estranho e...
— Não vai aparecer, filha. Eu já disse que te deixarei na porta do colégio, não disse? Lá dentro você não tem com o que se preocupar. Além do mais, esses telejornais são muito exagerados! Não se deve confiar neles — mentiu Klose. Sabia que todos os casos terrivelmente chocantes noticiados todos os meses na TV eram verídicos, porém não poderia deixar que sua filha, já assustada, pensasse assim.
— Mas papai...— Chega, Elizabeth! Vamos, pare de chorar, por favor — impacientou-se o pai, apanhando a garotinha pelo pulso e conduzindo-a ao portão. Ela chorava e se debatia, e acabou derrubando a Bíblia Sagrada de seu pai da estante. Klose não largou a menina enquanto recolocava a obra de Deus no lugar onde estava. Cansado de tanto serviço nas últimas semanas, ele queria aproveitar o seu dia de folga – que coincidia com a estreia da filha na escola – para relaxar bebendo em algum bar.
— Que mochila pesada, filha. O que tem aqui dentro?
Elizabeth nem lhe deu ouvidos; só queria chorar o máximo possível, a fim de irritar o pai pra que não a levasse à escola.

O judiado Audi A3 de Klose descansava em frente à sua casa. Ao abrir o portão, o jovem senhor caucasiano fez o sinal da cruz, como de costume, e saiu arrastando a menina de rosto molhado ao carro. O dia estava bonito; o sol batia no capô preto e refletia um brilho vivaz. Grandes pedras angulosas e cinzentas eram o asfalto daquela vila austríaca. Apesar da ansiedade em que se encontrava – para despachar logo a filha –, Klose parou antes de chegar ao carro para admirar aquela paisagem bucólica, sentindo em seu corpo o vento agradável do dia e aproveitando o silêncio. Naquela região, a claridade da primavera privilegiava o sossego; porém, inesperadamente, naquele fim de tarde o tempo inverteria, dando lugar ao frio, à chuva e às trevas.

— Um copo de scotch, por favor — pediu educadamente um sujeito cabeludo, de longas barbas escuras, sentando-se ereto defronte o balcão.
O balconista (único trabalhador e dono) do pequeno bar assentiu, apanhou a garrafa que o outro apontara e lhe serviu.
— Um pouco mais, por gentileza — disse o sujeito, mostrando-se cortês.
— Assim está bom?
— Perfeito. Muito obrigado — agradeceu, esvaziando o copo na garganta numa só talagada.
O homem do bar olhou impressionado. A maneira de beber daquele homem não condizia com sua figura alinhada. Suas barbas enormes não revelavam alguma distinção em sua aparência; porém, os trajes requintados – e totalmente negros – lhe concediam elegância e bons modos.
Abriram a porta do bar. O dono não esperava outro cliente num dia chuvoso como aquele, ainda mais naquele horário. Era onze da manhã, período em que os frequentadores de bar quase sempre são mendigos, alcoólatras, drogados e/ou vagabundos: coisas que não combinavam com o sujeito que acabava de entrar.
— Bom dia — disse ele em tom agastado, sentando-se ao lado do cabeludo bem vestido.
— Bom dia — respondeu o barman.
— Sim, um ótimo dia para nós todos, meu caro — sorriu o outro, simpático.
Klose sorriu de volta aprovando a disposição daquele.
— Um scotch. Duplo.
O homem do bar apanhou uma garrafa pelo pescoço e virou-a de cabeça pra baixo, até encher o copo à linha imaginária da farta dose. Pôs o whiskey sobre o balcão e empurrou ao novo cliente. O sujeito abatido de cabelos ouro-escuro e olhos pesados apoiou os cotovelos no balcão e debruçou-se sem se preocupar com postura.
— Vejo que andas com problemas, amigo. Se quiseres desabafar, estou a dispor — ofereceu o erudito em alemão coloquial.
Naqueles subúrbios do estado da Caríntia era de costume comunicar-se na língua eslovena, porém o alemão – língua oficial do país – sempre tinha mais valor.
— Obrigado, irmão. Achei que não se percebia tanto... — começou a refletir em voz alta Klose — Não me sinto bem, realmente.
— Gostarias de falar sobre?
Klose balançava o copo a tilintar os cubos de gelo nos cantos; imerso em suas questões.
— Bem... Por que não? — disse — O que acontece é que perdi o emprego. Fui demitido e não guardei economias para um caso de emergência, como este. Desempregado e sem dinheiro; não sei o que fazer. A sorte é que paguei as mensalidades da escola da minha filha antes de ser demitido, na semana passada — levantou de leve o queixo para dar uma golada caprichada na bebida.
O dono do bar lavava copos na pia à lateral do balcão. Estava acostumado a conversas de bêbado arrependido e, por isso, não dava atenção àquela. Já o outro, fixava seus olhos penetrantes com interesse naquele lamento.  Não se podia ver se, debaixo dos longos pêlos de sua mandíbula, ele sorria ou se ringia.
— Bem, tenho certeza de que tudo se arranjará, meu caro. É só questão de tempo, deves ter paciência e ser persistente — alvitrou com rouquidão a voz que era tão negra quanto seus trajes.
— Deus te ouça, irmão... Desculpe; seu nome?
— Hans. Hans Mozart, muito prazer.
Klose deu uma mão sem firmeza ao barbudo prestativo. Sorria forçosamente. De Hans, não se podia enxergar seus lábios, mas era perceptível que sorria com os olhos.
— Rapaz, onde fui colocar a minha arma... — refletiu Klose de repente, após instantes silenciosos.
— Arma? Tens uma arma, meu caro?
— Sim — virou-se — Tenho uma pistola. Uma precisa Beretta de 9mm que deixo guardada na gaveta da sala. É que tenho uma filha pequena e, por isso, ando me precavendo por causa desses sequestros a tantos menores que vêm ocorrendo aqui no país e na Alemanha.
— Muitos sequestros, meu caro? Acho que ando meio desatualizado — fingia ignorância o barbudo incomum.
— Como assim não sabe? — Klose olhou para o sujeito com espanto e depois virou seu scotch na garganta — Mais um, por favor — pediu ao balconista.
— Não estou sabendo destes acontecimentos, me desculpe — sorriu o olhar de raposa — Talvez seja porque não costumo assistir à televisão, nem a ler jornal.
— Rapaz, mas só fala-se disso por aqui! Nunca ouviu falar sobre a família Fritzl? Nem sobre a Elmedina, aquela garotinha de seis anos que foi sequestrada e asfixiada? E a Anne-Katrin , a Natalie ? Ou a Cláudia, que queimaram viva?
O impostor só negava com a cabeça, experientemente convincente.


O final do século XX e início do XXI foram marcantes para o país, pois neste tempo a Áustria tornava-se conhecida por sequestros cruéis e de longa duração. As crianças da região viviam apreensivas e com medo de se relacionar com estranhos, pois novas ocorrências desse tipo eram noticiadas com frequência.
Alguns casos particulares ganharam repercussão mundial devido às vítimas terem conseguido se libertar. Um deles foi o de Natascha Kampusch, raptada ainda criança e presa em um quarto minúsculo. A menina só foi conseguir escapar oito anos depois, aos 18, e acabou escrevendo um livro (“3096 Dias”) relatando todos os momentos em que vivera neste pesadelo. Outro caso notável – e muito pior – foi o da família Fritzl. Josef, o “monstro de Amstetten”, aprisionou a filha Elisabeth no porão de sua casa; drogou-a, algemou e a manteve presa por 24 anos, estuprando-a repetidamente e tendo sete filhos-netos com a mesma! Eram histórias terrivelmente chocantes, de psicopatas incomuns e excepcionais. A maioria deles foi descoberta e capturada pela policia austríaca. Porém, infelizmente, um deles nunca havia sido: Hans Mozart, o Doutor Sádico.
Desde sempre, Hans teve uma vida conturbada. Quando estava na barriga da mãe, seu pai fugiu. Depois disso, a mãe se tornou uma prostituta barata e teve uma filha não planejada, quatro anos depois, com algum de seus tantos clientes. Hans morava com as duas em uma casa alugada, porém passava o dia sozinho com a irmãzinha, enquanto sua mãe se prostituía para lhes dar do que comer.
O garoto era bastante esperto. Nada ingênuo, sempre soube da profissão da mãe e da fuga do pai. Rodeado por más influências, ele acabou se tornando um jovem quieto e, sobremaneira, sinistro. Vivia trancafiado em seu quarto, no desgastado computador, admirando o que de mais nojento e perturbador a Deep Web  tinha a oferecer:
Pedofilia, assassinatos, torturas sangrentas, estupros, canibalismo, necrofilia, zoofilia, cropofagia, entre outras incontáveis práticas absolutamente asquerosas e desmedidamente horrendas, que causariam repugnância a qualquer ser humano que possuísse razoáveis faculdades mentais.
Além disso, para mais pasmar o já pasmoso, para ainda piorar o inadmissível, o sadismo de Mozart não se saciava em somente ver toda essa insanidade... Ele queria fazer!
“Qual era o objetivo de Maldoror? (...)
Obter um amigo a toda a prova bastante ingênuo
para obedecer ao menor de seus comandos”
(Conde de Lautréamont)

— Esta aqui é a minha filha — Klose mostrava, meio ébrio, a foto de sua Elizabeth para a figura distinta com quem bebia.
— Muito bonita — limitou-se o último a comentar; seu olhar esgazeado, revelando estranha confiança.
— Daqui a pouco terei de buscá-la na escola. Tem horas?
— Treze horas e treze minutos, meu caro. Nem mais, nem menos — seu sorriso agora aumentava, cobrindo parte da barba num corte obsceno.
— Bem... Acho que ainda não está na hora — Klose derramou a primeira metade da quarta dose na garganta — A buscarei às quatro da tarde.
— Maravilha! Que beleza este relacionamento familiar, adoraria ter a chance de participar — exaltou-se Mozart de repente.
O pai de Elizabeth não entendeu o que o sujeito queria dizer com aquilo, mas não deu importância.
— Nossa relação é fantástica. Amo minha pequena mais do que tudo. Desde que a mãe faleceu, confesso que me tornei super protetor. Faço qualquer coisa por ela; e graças ao Senhor, Elizabeth sempre foi muito disciplinada, atenciosa, e preocupada comigo. Uma filha maravilhosa! — Klose exibia sua boa ventura.
— Admirável, meu caro! Este vínculo é coisa linda de se ver! Sua pequena, portanto, vê-te como um professor da vida — complementou Mozart, de uma maneira curiosamente curiosa, buscando a anuência do homem que já se mostrava um cristão.
— Sim, sim. Elizabeth sempre seguiu os meus exemplos. Quando quero lhe ensinar algo, digo “Hci, bodite pozorni, ucijo od oceta, kako je to storjeno ” e logo depois a vejo fazendo do jeitinho que lhe falei — Klose sorriu satisfeito — É realmente impressionante. Só eu dizer “Hci, bodite pozorni, ucijo od oceta, kako je to storjeno” uma vez, que ela compreende no mesmo instante! — repetiu.
— Formidável, meu caro! Sentir-me-ia felicíssimo se os visse assim, juntos — disse o sujeito letrado, dando um tapinha nas costas do pai orgulhoso.
— Obrigado, irmão — ele desgrudou a bunda do banco — Bem... Agora, acho que vou ao banheiro; estou apertado. Com licença — avisou Klose, se conduzindo.
Eis então que, subitam1ente, o enigmático homem de preto desceu a mão a um de seus bolsos e encontrou uma pílula. Sorrateiro, aproveitou que o balconista estava agora imerso num livro e largou cuidadosamente a pílula sobre o copo de Klose. Esta se desfez no whiskey sem deixar vestígios.
Um minuto depois, o loiro inocente retornou do banheiro se mostrando satisfeito.
— Nada melhor do que se aliviar quando apertado, não é mesmo, meu caro? — disse o falso amigo.
— Nada, irmão. Nada — Klose retribuiu a simpatia, retornando ao banco.
Sentou-se e pegou o copo meio cheio. O homem lhe olhava de canto, ainda sorridente. Klose bebeu.
Por alguns minutos, os dois continuaram a conversar sobre os mais variados assuntos, enquanto o balconista enchia-lhes o copo constantemente. O álcool agia naqueles dois organismos, mas por ambos já estarem acostumados, não havia perigo. O perigo – para Klose – era a ação da droga que tomara desavisado.
— Como eu dizia antes, sobre a minha pistola, ela desapareceu da gaveta onde fica guardada e não me lembro aonde possa tê-la colocado.
— Talvez em outra gaveta?
— Talvez... É possível, pois ando com a cabeça nas nuvens ultimamente. Preciso arrumar logo um novo emprego.
De repente, o caucasiano de olhos claros sentiu algo.
— Rapaz... Que estranho...
— O que houve? — indagou Hans, o fingido.
— Não sei, senti uma sonolência absurda de repente. Pode ter sido a bebida — imaginou — Melhor eu ir buscar minha filha antes que acabe dormindo por aqui — riu.
— Tudo bem, meu caro. Boa sorte com a sua procura de emprego. Prazer enorme te conhecer — o mentiroso abraçou o inocente.
— Digo o mesmo, irmão. Até um dia.
Klose acenou e rumou à saída do bar.
“Não gostaria de um dia dominar teus semelhantes? (...)
Os meios virtuosos e benévolos não servem pra nada”
(Conde de Lautréamont)

Foi muito cedo que Hans Mozart praticou o seu primeiro crime.
Quando tinha treze anos e sua irmã nove ele decidiu cometer um incesto. Fosse adulto, seria, além de mau irmão, pedófilo. Outro crime que não deixaria de experimentar num futuro próximo.
Com sua sagacidade natural, o jovem Hans conseguiu convencer a irmã de não comentar sobre o assunto com ninguém. Um segredo de irmãos. Revelou que era aquilo que a mamãe fazia para sustentá-los, e que, portanto, não era coisa errada. Convenceu também a criança de que, após um tempo de prática, ela não sentiria mais da dor que sofreu na primeira vez. Logo, o poder da persuasão fez o adolescente abusar da pobre garotinha por anos a fio.
“Pode-se induzir o povo a seguir uma causa, mas não a compreendê-la”, já dizia Confúcio  quinhentos anos antes de Cristo. De fato, a menina não compreendia exatamente qual a razão daquele ato desprezível, mas não era isso o que importava a Hans, e sim que ela apenas permitisse — tanto melhor para ela, pois se não ele a exploraria à força.
Além de se enredar na internet e de abusar da irmãzinha, Mozart gostava de passar o seu tempo envolvido com a arte — sobretudo a música e a leitura. Admirava as belas melodias da música clássica de seu homônimo Wolfgang A. Mozart, mas também, contrastando de maneira drástica, apreciava o estilo cru e agressivo do Black Metal nórdico, principalmente pelo fato de as letras serem de cunho anticristão e/ou ligadas ao satanismo.
Logo no início de seu envolvimento com a literatura, Hans buscou por autores tão depravados e desumanos como ele. Conde de Lautréamont, o poeta maldito, considerado o mais terrível e deplorável escritor que já existiu, era a sua maior inspiração. O homem, que morreu aos 24 anos de causa desconhecida, era considerado por muitos como “uma ruína humana completa”, e por outros como “uma revelação total que parece exceder as possibilidades humanas”. Seja como for, o fato é que, em seus escritos, com ideias repletas de maldade e insânia, Lautréamont fazia um testemunho de si mesmo, de como ele próprio enxergava o mundo.
Foi este homem quem serviu a Mozart como base para o surgimento de suas ideias perversas. Todavia, outra lunática personalidade também inspirava suas vontades: Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade. O aristocrata francês foi o responsável pela origem da palavra “sádico”. O termo, que é derivado de seu nome – sadismo –, significa “a perversão sexual de ter prazer na dor do outro”. Seu livro chamado “Os 120 Dias de Sodoma” é considerado a obra mais repulsiva de toda a história da literatura e dificilmente perderá este posto algum dia.
Graças à sua espantosa inteligência, aos dezessete anos de idade Hans Mozart ingressou na Universität Salzburg, a faculdade de ciências naturais de Salzburgo, metrópole do país. Através de seu curso – Biologia –, o jovem adquiriu conhecimentos minuciosos sobre cada parte do corpo humano e de outros animais. Contudo, fixou-se em aprender, sobremaneira, sobre os maiores pontos de dor do primeiro, onde, posteriormente, ele se tornaria um dos maiores experimentadores do globo.
Com isso, portanto, a faculdade acabou por satisfazer grande parte dos desejos insanos de Mozart, ocultos à sociedade.
Ocultos até então...
“Que minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um de nós reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos inimigos mortais. Quer deva eu conseguir uma vitória desastrosa ou sucumbir, o combate será belo;  eu, sozinho contra a humanidade”
(Conde de Lautréamont)

Caminhando de jovem a adulto, Hans resolveu que se aproveitaria de sua lábia para convencer os ignorantes a cometer loucuras a seu favor, e também a permitirem-no de executar, com eles próprios, as piores insanidades já imaginadas pelo ser humano. Sempre atento e precavido, o jovem sentava-se num pedestal imaginário e controlava a todos quem queria, persuadindo e convencendo-os da sua verdade como um poderoso hipnotizador.
Por volta dos dezenove anos de idade, Mozart decidiu sair da casa em que morava, pouco se importando com a família, a qual um mero resquício de carinho inexistia.
No final de uma rua esquecida e sem saída, onde nada mais havia senão uma casinha velha e arruinada, ainda morava um idoso solitário. Hans descobriu este ponto, que era no local mais escondido do bairro mais desabitado da cidade, e ali resolveu se instalar. Decidiu, portanto, que seria ali onde cometeria suas tão sonhadas atrocidades.
O terror que Mozart imporia sob aquele teto começaria logo com o próprio morador, não fosse um imprevisto. Uma noite, Hans invadiu a casinha e deu de encontro com o velho na sala. Servido de um pau, o jovem barbudo atacou o homem desprevenido acertando-lhe em cheio a cabeça. O corpo inerte desabou, manchando o tapete de rubro. Mozart pegou naquelas finas canelas a fim de amarrá-las na mesa da sala; entretanto, constatou que a vítima infelizmente já não tinha mais vida.
— Má sorte!
Por ter exagerado na paulada, não seria daquela vez que o psicopata Hans Mozart iniciaria com as impiedosas torturas que vinha planejando. De qualquer modo, o inferno já possuía um endereço.

— Deixe que cuido dele, bom homem, não há de se preocupar — disse ao dono do bar o barbudo, ao presenciarem o sujeito loiro cair inconsciente perto da porta.
Klose apagara de repente, desabando enquanto se encaminhava à saída do bar para buscar a filha na escola.
O indivíduo requintado ajeitou as mangas da camisa e levantou-se donde se assentava. Buscou o homem estirado com os olhos jornadeando por algum vácuo da mente, e jogou o corpo sobre seus ombros. Carregando o loiro magro sem dificuldades, prometeu ao barman que cuidaria dele, convencendo de que o levaria a salvo para casa.

O louco deu início ao terror. Começou a arrastar vítimas frágeis e indefesas para seu aposento. Homens fracos, velhas, velhos, mocinhas, crianças. Com todos eles, sem clemência, fazia coisas que até Deus duvida. O sofrimento que Hans impunha às vítimas, por meio de incontáveis torturas, era de uma intensidade inimaginável. E mesmo quando já as havia trucidado, o louco usava seus corpos mortos para continuar praticando suas insânias.
O Homo Sapiens é realmente uma espécie interessante. Indiscutivelmente o ser mais complexo, impressionante e pensador do planeta, e, contudo, ao mesmo tempo, o animal mais inconstante e primitivo. Ou alguém acha que um rato se disporia a fazer sexo com outro que já se encontrasse morto?
Todavia, a necrofilia é apenas um dentre tantos desejos bizarros que possuem algumas mentes humanas, excêntricas além do limite; e Mozart os punha todos em prática dentro de seu recanto da maldade.
“A primeira lei que a natureza me impõe  é gozar à custa seja de quem for”
(Marquês de Sade)

Prosseguindo com a faculdade – a fim de aprender novos métodos sobre como cortar um corpo vivo protegendo-o da morte sem evitar a efusão de sangue (e sofrimento) –, Mozart procurava por alguém para ajudá-lo com seus raptos.
Ao ver o velho professor Franz fazendo um ato antiético – a vivissecção  – no laboratório, com um sorriso invulgar no rosto, Hans descobriu o cúmplice perfeito para suas atrocidades. O ato causou alarde e espanto entre todos os alunos que presenciaram a cena, exceto em Mozart, que depois disso começou a prestar atenção naquele curioso senhor.
Cada vez mais, através de seus gestos e modos, Franz indicava a Hans que suas vontades eram tão insanas quanto às dele, ou quase. O olhar do velho revelava um prazer singular ao mexer com animais vivos, satisfeito quando os ouvia gemer de dor. Os alunos olhavam o professor com aversão; já Mozart, entretanto, decidiu se tornar seu íntimo.

Qual era o objetivo de Maldoror?

Desde o início, o velho Franz mostrou a Hans que, além do gosto pelo mórbido, possuía uma mente manipulável. Tais características eram perfeitamente adequadas aos planos do jovem monstro, que, portanto, não encontrou dificuldades para fazer de Franz o seu súdito.
Usando-se de seu poder de persuasão, Mozart convenceu o professor certa noite de ir até a sua casa para conhecer seus segredos, os quais – ele garantiu – Franz não se arrependeria.
De fato, ao conhecer o recinto e as barbaridades ali pintadas, o velho se encantou. Nunca em sua vida havia visto tanta monstruosidade por metro quadrado, e aquilo lhe fascinava. Nessa noite, ele e seu jovem mestre da insânia decidiram fazer coisas nada ortodoxas. Primeiramente, usaram drogas das mais lesivas e se encharcaram de álcool, e depois, de urina. Sim, no clímax da loucura o mestre ordenou que Franz lhe desse a cara para se aliviar sobre ela. Após, fez ainda pior...
O velho demente não objetou sobre as barbaridades as quais fora submetido, pois no canto da sala escura havia uma mulher largada ao chão que lhe chamou a atenção. A figura tinha uma perna decepada e suas orelhas arrancadas. Ao redor, sangue em abundância tingia os velhos pisos de marrom escuro, sob onde medonhos ratos se movimentavam. Visivelmente desnutrida, a mulher de pele e ossos clamava por socorro amarrada pelos pulsos e tornozelos a paredes perpendiculares. Logo, visto que era para o seu próprio deleite, o jovem barbudo decidiu autorizar que seu novo súdito – e também cúmplice – pudesse usá-la da maneira que bem quisesse. E ele usou...
“Todos os princípios morais universais são puras fantasias”
(Marquês de Sade)

Depois de Franz deliciar-se com seus exageros, a pobre mulher não dava mais sinal de vida. Acabada, destruída. Como de costume, Hans levou o corpo para o fundo da casa e lhe ateou fogo. Disse ao súdito que, a partir de então, não mais se chamaria Hans Mozart. Denominou-se “Doutor Sádico” e fez com que, por assim, suas vítimas e Franz lhe tratassem.
Noite pós noite, o professor frequentava o recinto do Doutor para cometerem suas insanidades. Às vezes, as vítimas eram capturadas por Franz, outras vezes, pelo mestre. Algumas delas, eles matavam na primeira noite, e outras, torturavam por semanas. Um dos instrumentos preferidos do Doutor era a tesoura; contudo, nunca a usava pra cortar seus cabelos e barba, mas somente para submeter ao tormento aqueles infelizes, por horas a fio, até a morte.
— O grande Isidore  disse em seus escritos que queria ser um animal selvagem, um tigre, para que pudesse matar e não ser considerado mau! Já eu, pelo contrário: ser mau é coisa que me agrada sem igual! Há Há Há! — disse uma noite o Doutor Sádico.
O sujeito letrado possuía dezenas de livros que certa vez furtara de uma biblioteca. Sempre apreciou contos sórdidos, imorais e insanos, contudo, sobremaneira, as historias dos serial killers, os quais admirava por suas inteligências e criatividade bizarra. Sádico gargalhava a cada vez que lia, em voz alta, o depoimento do alemão Armin Meiwes  — mais conhecido como Açougueiro:
“O ato de comer os restos mortais deu sentido à morte, já que o corpo não foi jogado fora. Eu salguei o filé de Bernd com sal, pimenta, alho e noz-moscada. Comi ele com croquetes, couve e molho de pimentão verde”, ele revelara.
— “Espero que me ache saboroso”. Há Há Há! — gargalhou o Doutor noutra noite.
— Como? — Franz não compreendeu.
— Foi o que disse o tal de Bernd  antes de oferecer-se para ser devorado! Há Há Há! Demasiado hilário, meu caro, não achaste? Hilariante! — chorava de rir o louco Doutor. Já o velho Franz, não entendia qual a graça, porém ria junto, abobalhado.
Desse modo, muitas noites se passaram, mestre e vassalo colocando suas fantasias em prática sobre as vítimas indefesas. Nos noticiários de Salzburgo, as dezenas de pessoas desaparecidas durante esse período ganhavam destaque. Todavia, os dois psicopatas eram extremamente cuidadosos e precavidos com seus raptos, e nunca foram pegos.
Após ter largado a faculdade, Doutor Sádico passava o dia inteiro se divertindo em seu recanto do sofrimento; ao passo que, naquela, aluno algum sequer desconfiava do que o professor Franz fazia à noite, apesar de seu comportamento bizarro nas aulas vespertinas.

Um soco ecoou na boca de seu estômago. Ele dobrou-se de joelhos ao chão de barro e levantou o pescoço. Sob o céu negro e estrelado, uma barba tão escura quanto ele cobria um rosto conhecido.
“Onde estou? O que houve? Por que estou...”
— Foste drogado, meu caro — revelou o sujeito em pé, acima dele, como se lesse seus pensamentos.
Klose olhou em torno e enxergou pouco. Não havia luz, tudo era escuro. Contudo, à sua direita, percebia-se uma pequena casa de madeira. Ele gritou.
— Não adianta, bom homem. Aqui não tem nada, nem ninguém. Olha tu mesmo! Estás em um lugar apenas nosso — piscou o Sádico.
De imediato, o aterrorizado Klose tentou se levantar, mas foi parado em meio caminho... Por outro soco.
Caiu de novo. Antes que pudesse recuperar o ar, o agressor se abaixou e lhe aplicou um segundo golpe na costela, ainda mais forte. A dor foi lancinante. Klose sentia que o osso inferior da caixa torácica talvez houvesse se quebrado. “Uma mão não seria capaz de fazer isso”, pensou. Contudo, ao vislumbrar a mão do monstro, percebeu que um soco inglês  envolvia seus dedos.
Klose tossia sangue no solo barroso.
 — Mas, por quê?! O que você quer? Quando... — tartamudeava desesperado — Já é noite! Que horas são?! Precisava buscar a minha filha na...
— Fica descansado, meu caro, pois neste momento meu servo já busca a tua menina — piscou — Logo mais, tu e ela se verão.
— Co... Como?! Mas... — Klose começou a apalpar os bolsos da calça e não encontrou nada.
— Onde está a minha carteira?! Devolva agora, seu...
O sujeito acima dele largou a bolsinha de couro sobre sua cabeça, ainda rindo.
— Está tu achando que necessito desta porcaria, do teu dinheiro? Ah, como és fraco, meu caro! Só queria, obviamente, aquela foto de tua pequenina que havias me mostrado! — exclamou explicando — Estou ansioso para Franz trazê-la cá; iremos nos divertir tanto juntos! Há Há Há...
Enquanto o Doutor ria ruidosamente, Klose aproveitou de sua distração e se levantou. Com uma mão na costela latejante, começou a correr para a esquerda, mas logo entreviu uma mão de prata chegando à sua têmpora.


Dor. Garganta seca. Coração palpitante.
Klose acordou em um latíbulo. Havia desmaiado outra vez.
O silêncio propagava o medo pelo ar. O digno ouvia um som baixo e abafado (uma voz), como numa concha do mar. Tontura, confusão. Dor na costela ao respirar. Uma pontada na têmpora direita aumentava a desordem de seus pensamentos. A escuridão agravava o seu terror, lhe oprimindo e sufocando.
...e hoje você será minha boneca!
Klose conseguiu reconhecer o dono daquela voz.
— Onde está?! Cadê você? — gritou o louro, assombrado, sem enxergar um palmo à frente.
Ele se recordava de que, antes de desmaiar, estava em um local inóspito e escuro; contudo, não tão escuro quanto o de agora: se o primeiro ambiente lhe parecia assustador, este então era pavoroso!
Klose notou que – pelo calor e pelo eco ali presentes – provavelmente se encontrava em algum recinto coberto, não muito largo e com pisos quebrados de cimento, sobre os quais seus joelhos beijavam alguns pedaços.
Um fedor obsceno.
Foi de repente, quando parou de respirar assustado pela boca, que Klose sentiu àquele maldito cheiro invadindo suas vias nasais. Imediatamente, dobrou-se a vomitar. Pôs as palmas no chão molhado e adicionou um novo conteúdo gosmento à coleção que lá já havia. Como pano de fundo daquela cena imunda, ele ouvia a risada insana do sujeito cabeludo.
— Onde você está?! Apareça!
Klose pôs-se de pé de um salto e vagueou as pernas sobre o ambiente sem lustre. Sob os pés, sentia coisas moles e líquidas, e algumas vivas: mexiam-se. Passo a passo, os braços estendidos à frente como um zumbi, Klose deu de cara com uma parede. Rumou noutra direção, pois precisava sair dali. Deu com outra parede; e varreu seu braço por ela. Não encontrou maçaneta nem algo parecido.
Desesperou-se.
— O que você quer?! Que bichos são estes tentando escalar a minha perna? Ah! Droga! Fale algo, infeliz, pare de rir! — Klose sacudiu o joelho — Pois saiba você que, o que quer que esteja tramando, não terá sucesso, me ouviu? Eu confio no meu Senhor! — o loiro empinou a cabeça naquele breu e uniu suas mãos cheias de fé em direção aos céus — O Senhor está comigo e nada eu hei de temer!
— Ora! Um cristão!
Juntamente à voz satisfeita do vilão, uma luz se acendeu no recinto.


Para descrever o interior daquela casa, palavras não passam de vento. Se os termos “terrível”, “desprezível”, “asqueroso” e “cruel” fossem multiplicados entre si, não representariam mínima fração de uma definição justa para tamanha desumanidade. Corpos mutilados, instrumentos de tortura e toneladas de podridão compunham um indesejado panorama aos olhos do sensível cristão.
Ele escondeu a vista. Não queria enxergar o que o lampião na mão de Mozart lhe mostrava. Suas pálpebras começaram a pesar sob lágrimas ardentes. Tentou fingir que nada daquilo estava acontecendo.
— Me tire daqui... Deixe-me em paz... Pelo amor de Deus... — balbuciava o desesperado, controlando-se para não perder o juízo.
— Por que não rogas a ele, o teu Deus, agora, meu caro? — disse a voz cortante do homem inescrupuloso a alguns metros de Klose.
Este se largou ao chão no mesmo instante e pôs-se a rezar. O Doutor, então, se moveu a passadas ameaçadoras e levantou, com a mão esquerda, o crente pelo queixo.
— Levanta-te daí, estúpido! Quero te mostrar uma coisa — sorriram aqueles olhos esgazeados.
O barbudo arrastou o digno a um dos cantos do cubículo, e, segurando com a mão direita o lampião, ergueu o instrumento direcionando seu feixe de luzes a dois objetos encostados.
— Veja bem, meu caro. Isto é o que acontecerá contigo — o monstro mirava à luz um crânio amassado e quebrado em vários lugares, preso na parede a pregadas.
Aquilo revelava que naquela cavidade óssea houvera um espancamento nada moderado, e que, se antes disso a vítima ainda vivia, então havia sofrido de um castigo deveras impiedoso. Mas Klose quis acreditar que não.
O Doutor moveu um pouco o lampião a fim de focalizar outro crânio, contíguo àquele. Era menor e estava ainda mais arrasado. O maxilar pendia numa pose disforme e pedaços faltavam nas laterais e no superior da caixa craniana, como se arrebentada a marteladas.
— E isto — apontou ao menor crânio o indicador da mão que segurava o lampião — É o que acontecerá com a tua garotinha.
Klose, que ainda se encontrava estático, a cabeça entre os dedos do barbudo, tomou um choque ao ouvir aquilo e, num tranco do pescoço, conseguiu se soltar e correr tropeçante à parte oposta da casa/cômodo, onde supunha estar a saída. Porém, enquanto ele sondava novamente as paredes em meio àquele terrífico breu – pisando sobre coisas quais nem queria imaginar –, o Doutor Sádico gargalhava com seu lampião na mão, no único ponto luminoso do recinto.
O homem moveu-se, correndo o facho do objeto pelo chão até iluminar uma quina do cômodo. Klose pausou seus prantos e virou-se a mirá-lo. Ajoelhando-se, o Doutor espantou os ratos gordos que estavam ali se alimentando da carne qual ele buscava. Pousou o lampião e tirou pela frente da calça uma faca de açougueiro que habitava sua virilha. A ferramenta saiu de lá já cheia de sangue — percebeu Klose —, provavelmente por ter cortado o próprio corpo do insano dono, que parecia não se importar — e, talvez, até gostar.
Com um sorriso eterno sob a barba destratada, Doutor Sádico pôs a arma branca frente ao rosto e lambeu a lâmina afiada sem queixar-se de dor. Sua língua começou a gotejar sangue e seu sorriso abriu-se ainda mais. Klose congelou.
Enquanto a barba se tingia de vermelho sob sua boca aberta, o Doutor pegou o pedaço de carne que repousava adiante e desceu-lhe um golpe exato. O bom cristão, mentalmente boquiaberto, percebia que aquele tronco de carne e osso era uma perna humana.
Com mais duas justas facadas sobre o mesmo ponto, Sádico conseguiu arrancar o pedaço apetecido – do calcanhar ao mediano da canela – e apanhou-o como um troféu.
— Não gosto de dedos; têm poucos pêlos e as unhas me enojam — falou ao vento o demônio cabeludo — Prefiro uma canela bastante vilosa e com gordura em abundância. Este mancebo era do jeito que gosto: gordo, resistente, e um tanto desesperado e lamentador quanto tu — dirigiu-se à Klose com aquele olhar estonteante — Acredita: torturá-lo foi agradabilíssimo!
Sádico ergueu o pedaço de perna cheio de mordidas de ratos e pôs-se a observá-lo com admiração. Escolheu uma parte e abocanhou, cerrando os olhos cheios de prazer. Por conseguinte, Klose também fechou os seus: seu senso não conseguia processar tamanha barbárie. Enquanto o digno mantinha-se horrorizado, o canibal devorou ferozmente aquela peça de pele e carne crua, como um animal, cuspindo somente os ossos maiores.
Desviando o olhar daquela cena repelente, Klose topou com nova hediondez.  Na parede do recinto, ao lado do homem se alimentando doutro, havia um gigantesco símbolo que era perceptível ao resquício de luz alcançado pelo lampião.
Era um pentágono inverso em tom rubro, claramente desenhado com sangue. No centro do símbolo, havia a cabeça de um bode, os olhos cravados na parede detrás por um prego longo. Klose conhecia o significado daquela marca. A marca do satanismo, a marca do demônio. Ao lado dela, havia dezenas de traçados também feitos com sangue: o famoso “666”, o “Baphomet ” ou “Bode de Mendes”, cruzes viradas para baixo, mãos chifradas, entre outros símbolos satânicos.
O Doutor, todo manchado de sangue, deu-se então por satisfeito e largou a sua refeição sórdida aos roedores inquilinos. Percebendo que Klose contemplava suas pinturas, resolveu comentar com ele sobre o tema.
— O que achas disso, cristão? Gostas?
O medo travara o maxilar de Klose a ponto de dificultar a fala. Fechando os olhos para o inferno à sua volta, respirou fundo e tentou manter o autocontrole da maneira possível.
— Medonho! Horrendo! Monstruoso! Nem tenho palavras para isso! É tudo tão... — Klose não aguentou e pôs-se a chorar e a rezar — Ó Deus! Ó meu Pai! Por favor, não permita que este demônio faça alguma coisa com Elizabeth! Não...
— Ora, meine Hündin ! — cortou-lhe o Doutor, abandonando a interesseira gentileza com que falava com aquele — Já não disse que tu e tua pequenina ides a terminar como aqueles crânios que te mostrei? Pois sim, contudo, deves saber que, antes disso, vós ireis a sofrer muitíssimo! Inimaginavelmente! — ele ameaçou entre gargalhadas, aproximando-lhe a faca assassina qual havia usado há pouco.
— Meu Pai não permitirá! — contestou o medo entre soluços — O Senhor é muito mais poderoso do que o...
— Demônio? Satanás?  Lúcifer, o anjo caído? Há Há Há! Ora, tolo, como podes acreditar nesses contos de fadas? Estúpido!
Klose ficou confuso; o medo que lhe paralisava abriu espaço para a dúvida.
— Mas... Como assim? Seu corpo foi possuído pelo demônio! Por isso...
— Cala-te! — bradou o louco, aproximando a faca do pescoço oponente — Logicamente não acredito em toda essa baboseira; nada disso faz algum sentido! Pensas que sou insano?! Sim, sou um monstro sádico, terrível e cruel! Mas não um pateta como vós — surpreendentemente, o Doutor revelava então que reconhecia a sua loucura e a bizarrice de seus atos e vontades — Religião, a campeã mundial do besteirol, de todos os tempos!

“Quando uma pessoa sofre de um delírio, isso se chama insanidade.
Quando muitas pessoas sofrem de um delírio, isso se chama religião”
(Robert M. Pirsig)


Klose o olhava sem entender nada. Aquele homem era ou não era um satânico?
— Não, não sou satânico — disse este como se lesse os pensamentos do outro — Mas muito menos cristão! Nada dessas baboseiras de céu e inferno existem! Isto é pura tolice! — falou o Doutor julgando-se dono da razão.
Apertou a ponta da faca no pescoço de Klose e depois se afastou, deixando atrás de si um pequeno furo que resultava em gemidos controlados da vítima e um filete fino de sangue que escorria para o peito. Após conscientizar-se de que sua garganta não fora rasgada, o digno suspirou e tentou entender o que havia.
— Mas como você não é satânico? E todas essas coisas na parede? — apontou o dedo trêmulo ao ponto mais claro da sala escura.
Eis então que, estranhamente, um instruído debate se iniciou sob aquele negrume de terror.
— Isto tudo, tais pinturas de sangue, a cabeça de bode pregada, e todos estes símbolos que tu vês aí têm única e exclusivamente a função de apavorar, ainda mais, os desgraçados que trago aqui; para criar um clima tão terrífico a eles quanto prazeroso a mim — gargalhou — Ah, como me divirto com as expressões de horror dos ignorantes que acreditam que aqui é um recanto de Satã!
Apesar de parecer satânico, Doutor Sádico de fato não era. Embora admirasse os sacrifícios oferecidos ao diabo, ele era muito mais perverso do que um simples assassino fanático religioso; era um amante do desespero, da humilhação e da dor alheia — o demônio em carne e osso.
— Apenas me digo adepto do satanismo por ele representar o mal, a desgraça e o sofrimento dos tolos! — o Doutor continuava, mostrando irritação — Pois, para todos eles, o cristianismo pode ser bom e o satanismo mau, mas na verdade os dois são obviamente neutros! Muitos patetas não gostam nem querem aceitar esse conceito, mas é a realidade! E sabes por quê?!
Klose, o cristão, manteve-se calado. Não desconfiava que um sujeito de hábitos primordiais, bárbaro e insano como aquele pudesse possuir alguma cultura e potencial para discorrer tão bem.
— Ao longo da história, o número de crimes, abusos infantis e todo o sadismo disfarçado cometidos por fanáticos em nome de Deus, Jesus e Maomé é incomparavelmente maior do que os cometidos em nome do demônio! Sabes disso, não é?
Evitando mirar o perverso, Klose decidiu estapear o seu silêncio e defender com frenesi as suas crenças.
 — Mas isso é porque existem poucas pessoas no mundo que cultuam o terrível Lúcifer, e devemos também entender que em todos os povos, grupos e nações sempre existem aqueles (homens) depravados, lunáticos e sem coração, como você!
Sob a barba, a boca do Doutor abriu-se a gargalhar verdadeiramente; mas Klose continuou.
 — Além disso, muitos dos que se dizem religiosos podem usar este argumento de que “fizeram em nome de Deus” na tentativa de causar a compreensão de algum julgador para aliviar o seu crime. Também têm aqueles que dizem agir em nome de Deus, mas que, na verdade, estão sob o controle de Lúcifer.
"A beleza da mania religiosa é que ela tem o poder de explicar tudo. Uma vez que Deus ou Satã são aceitos como a primeira causa de tudo que acontece no mundo mortal, nada é deixado à sorte...
a lógica pode ser alegremente jogada pela janela"
(Stephen King)

— Néscio! Sabes que isso não faz sentido; todavia, a enganadora persuasão teima em te querer convencer de que não creste em tolices durante toda a vida. Vós, religiosos aficionados, procurais respostas como agulha em palheiro, e não admitis estar errados. Eu me lixo para tudo isso! A mim, não importam limites ou até a que ponto chego. Quanto mais longe, mais delícias! — provocou o diabo em forma de gente.
— Você não tem coração...
Rindo, o Doutor passeou pelo ambiente até topar com o pé num livro que procurava. Sujo e lambuzado sabe-se-lá-do-quê, o nojento e velho calhamaço tratava-se de uma compilação de citações e textos de personalidades notórias e grandes nomes da literatura mundial.
— Você não é um ser humano, é um animal! — Klose começava a se exaltar, encostado na parede enquanto procurava por rachaduras com as palmas.
Com o livro em mãos, Sádico respondeu.
— "Nenhum animal é mais calamitoso do que o homem, pela simples razão de que todos se contentam com os limites da sua natureza, ao passo que apenas o homem se obstina em ultrapassar os limites da sua" (Erasmo de Roterdã)
— Sim! Pela primeira vez concordo com você! Nem um animal feroz seria capaz destas insanidades. Louco!
Klose não encontrava sequer uma fenda na parede pela qual pudesse se libertar daquele inferno de trevas. Ele ficava cada vez mais desesperado e, no momento, fugir a tempo de encontrar sua filha era só o que lhe importava na vida.
Doutor Sádico virava as folhas.
— “A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente" (Clarice Lispector)
— Sensatez?!    Essa declaração só acaba por sublinhar a sua demência! Deus! Como você pode achar que é uma pessoa sensata? Não passa de um louco, um psicopata sem caráter que não se encaixa na sociedade! — o loiro de boa alma deduziu que, naquela guerra entre quatro paredes, ferir o ego do monstro seria um poderoso recurso em seu favor; acabar com aquela convicção confiante que o levava a fazer o que fazia.
Klose insistiria nessa arma.
— Se as pessoas fossem todas como você, nosso mundo estaria perdido!
— “O mundo é cego, e tu vens exatamente dele” (Dante Alighieri) — o Doutor citou em resposta, divertido com a brincadeira das frases.
O facho de luz do comprido lampião que descansava sob o maldito iluminava-o com mais nitidez da cintura para cima; aquilo lhe dava um aspecto ainda mais aterrador, com o seu sorriso amarelado sob a barba sangrenta e um livro sujo sob dedos sujos.
— Quem está cego é você, irmão! Liberte-se do demônio, ele está te controlando! — Klose berrava com todas as suas forças, buscando produzir, naquele cubículo, o eco divino qual costumava testemunhar em sua igreja — Saia deste corpo, Satanás! Volte já ao inferno; suas maldades aqui não têm nenhum valor!
— “Deus fez o alimento, o diabo acrescentou o tempero” (James Joyce) — rebateu o Doutor poucos segundos depois.
— Não te entendo, monstro! Você, primeiro, diz que não acredita no diabo, e agora o defende! ... Pois me diga: se realmente não está possuído, e se não acredita no demônio, para quê fazer o mau ao próximo? Para quê tanta crueldade?!
— “Sem crueldade não há espetáculo. A crueldade é um dos prazeres mais antigos da humanidade” (Friedrich Nietzsche)
Enquanto questionava aquele insólito, Klose não permanecia parado. Sobre a luz do lampião, o Doutor barbudo era-lhe sempre visível, porém ele, entre o negrume, não passava de sombra à vista do outro.
Todavia, o fato de não poder enxergar o adversário não preocupava o Doutor. Confiante de que tudo estaria, de qualquer modo, sob seu controle, Sádico olhava o seu livro admirando tranquilo as belas frases de seus escritores preferidos, enquanto tinha a certeza de que a vítima não escaparia dali.
Por sua vez, o loiro digno tentava distrair o psicopata com suas falácias, a fim de mantê-lo com aquele sorriso doentio entre as páginas, enquanto ele procurava por algum furo naquela bolha de maus vícios.
— Prazeres?! Só se for aos loucos, aos depravados! Diz isso porque subjuga sempre as suas vítimas, queria ver é se topasse com um rival tão louco e mais forte do que você.
— “Quanto maior é a sede, maior é o prazer em satisfazê-la” (Dante Alighieri)
— O que você diz não faz sentido...
Ainda se movimentando e tateando as paredes com as mãos, o digno cristão, de repente, conseguiu perceber algo...
Um vazio.
Seu coração saltou. A palma de sua mão esquerda havia sentido um pequeno espaço livre na parede... Uma fenda!
Com calma, Klose conteve a respiração impetuosa, e voltou a sua mão a fim de retorná-la àquele ponto. Ao perceber que a liberdade estava ali, à sua frente, a atmosfera lhe tornou-se, ainda mais, intoleravelmente confinada. O negror da treva eterna o empurrava ao desespero, à ansiedade máxima.
Contudo, Klose conseguiu controlar-se. Exercitou a sua razão até concluir que deveria continuar debatendo com o malfeitor, com a finalidade de entretê-lo, e, consequentemente, torná-lo desatento à sua tentativa de escapar.
— “Que seria esta vida, se é que de vida merece o nome, sem os prazeres da volúpia? — clamava o Doutor à escuridão, ignorante sobre o projeto da vítima — Podeis, pois, estar certos de que também os estóicos não desprezam a volúpia, embora astutamente se finjam alheios a ela e a ultrajem com mil injúrias diante do povo. (...) Mas, admitindo que esses hipócritas declamem de boa fé, dizei-me, por Júpiter, sim, dizei-me se há, acaso, um só dia na vida que não seja triste, desagradável, fastidioso, enfadonho, aborrecido, quando não é animado pela volúpia, isto é, pelo condimento da loucura” (Erasmo de Roterdã – Elogio da Loucura)

No momento em que o devasso findava sua leitura, os dedos de Klose se reencontravam com a fenda divina. Dentro daquele buraco, qual nem fio de luz conseguia transpassar, o cristão enxergava a sua sorte enviada por Deus. Enfiou os dedos principais na rachadura e logo sentiu que, a partir dali, a parede velha podia desfazer-se facilmente.
Cauteloso, Klose tentou, ao prosseguir com o debate, disfarçar qualquer barulho tímido de quebramento.  Discutiria no mesmo tom de antes, é claro, para não revelar também qualquer exaltação fora do comum.
— Fale por você, insensato — ele tentava não balbuciar — Acredite: não são todas as pessoas que procuram estes tipos de prazer. Para dizer a verdade, o número delas é ínfimo! Insanos como você, são um em um milhão! Este escritor nada mais era do que um destes. Os que têm Deus no coração não necessitam de luxúrias para viver. Somos satisfeitos simplesmente por poder existir e louvar ao nosso Senhor. ... Mas, no final das contas, eu sinto pena de você, sabia? Por não ter tido a oportunidade de cultuar numa igreja. Tão mais feliz você seria se conhecesse as palavras e o poder do Nosso Senhor! Entretanto, saiba que, desde que comece a orar, nunca é tarde para ser perdoado — Klose tentou persuadi-lo.
Enquanto os dedos mais sujos viravam novamente as páginas do calhamaço, os outros tentavam “abrir” um pedaço da parede da maneira mais silenciosa possível, quebrando-a a partir de um fragmento.
(...)

PATRICIO, Carlos. Delirium. 1 Ed. São José dos Pinhais, PR: Página 42 Editora, 2014. 228 p.; 23 cm
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