O Mapinguari é o mais popular dos monstros da Amazônia. Seu domínio estende-se pelo Pará, Amazonas, Acre, vivificado pelo medo duma população infixa que mora nas matas, subindo os rios, acampando nas margens ignotas das grandes águas sem nome. [...] Mata sempre, infalivelmente, obstinadamente, quem encontra. Mata para comer. Descrevem-no como um homem agigantado, negro pelos cabelos longos que o recobrem como um manto, de mãos compridas, unhas em garra, fome inextinguível. Só é vulnerável no umbigo. Esse lugar é clássico para a morte dos monstros como o lobisomem em certas paragens, porém o Mapinguari dorme a noite. O perigo é de dia, o dia penumbra no meio das florestas que coam a luz do sol fazendo-a macia e tênue. O mapinguari berra alto, berros soltos, curtos, altos, atordoadores. Esses gritos roucos e contínuos explicam rumores que a floresta produz sem justificação, assim como o Curupira batendo nas árvores, Boitatá enroscando-se em fogo nas relvas, Anhanga galopando com olhos coruscantes, Caapora guiando a manada de porcos caetetus, etc. Que signiica Mapinguari? Possivelmente se trata de uma contração de mbaé-pi-guari, a coisa que tem o pé torto, retorcido, ao avesso. O início do espanto seria o rastro de forma estranha, circular, indicando justamente a direção oposta ao verdadeiro rumo. Posteriormente é que a imaginação criou a figura material, tão semelhante aos outros monstros (CASCUDO, 2015).
Mapinguari pan-amazônico: personagem única e definitiva
Os traços do Mapinguari apresentados acima levam a concluir de imediato que se trata de uma personagem com características muito semelhantes ao Capelobo, mas também se pode deduzir que ele é quase uma síntese das personagens estranhas contidas em narrativas da tradição ancestral europeia (como eram o Polifemo, da tradição grega, e o Olharapo da tradição portuguesa, por exemplo), da tradição ancestral indígena (como o Curupira, sobretudo, gigante ciópode/monópode/unípede e/ou bípede, hipópode e/ou opistópode etc.) e da tradição nordestina (como, particularmente o Pai da Mata e o Capelobo) que no cadinho das florestas e das águas tropicais se tornavam Mapinguari.
Vegini (2014) |
Com base no levantamento histórico-bibliográfico de Vegini (2014), constatou-se que: (a) na tradição europeia são muitas as personagens, que contêm uma ou mais das características apontadas acima, destacando-se entre elas o Polifemo de Homero (Imagem 01), como a mais emblemática, o ciclope da Imagem 02, como uma síntese delas, e o Olharapo, como o mais brasileiro dos monstros lusitanos; (b) na tradição ameríndia, também são muitas as personagens que contêm uma ou mais características descritas acima entre as quais se destacam o Jurupari (Jurupari/Wãx-t/Bisiu), o Anhanga, o Caapora/Caipora, o Mboi-Tatá, os Curiguerês/Curinqueans, o Bicho-Preguiça gigante, o Macaco-Preguiça gigante e o Curupira (Curupira/Mutayús, Curupira/Boraró/Moláro), como a mais significativa dentre elas; (c) a partir de 1500, com a tomada de posse do Brasil pelos portugueses e o choque cultural entre a civilização europeia e a ameríndia daí decorrente, essas personagens foram aos poucos sendo adaptadas e narrativas dessa tradição de gigantes foram refletindo a nova realidade e fazendo surgir, especialmente no Nordeste brasileiro, personagens não menos estranhas como o Pai da Mata, o Papa-Figo, o Gorjala, o Pé-de-Garrafa, o Bicho-Homem, o Labatut, o Quibungo e o Cupelobo/MA, a primeira e a última como as mais expressivas; (d) no final do século XIX e princípios do século XX, essas narrativas chegaram à região amazônica, a partir do Pará, através dos retirantes nordestinos, que buscavam na borracha uma forma desesperada para sobreviver; (e) ao chegarem à região Norte, esses migrantes se depararam com outras narrativas da tradição ameríndia e, nesse novo amálgama, suas personagens sofreram novo processo de adaptação surgindo daí novas narrativas de personagens ainda mais monstruosas como o Capelobo do Pará e, posteriormente, o Mapinguari, um macacão gigante e antropófago, ciclope ou binóculo, ciópode ou bípede, hipópode e/ou opistópode, blêmio, de berros estridentes, com unhas enormes e em forma de garras, cabelos negros e longos, corpo coberto com uma armadura impenetrável, mas vulnerável no umbigo, de onde
exalava fedor insuportável, e de hábitos diurnos de caminhar na mata, período do dia em que se dedicava a praticar suas perversidades; (f) narrativas tendo como protagonista essa nova personagem monstruosa, pela boca dos seringueiros, dos indígenas, garimpeiros, mateiros, caçadores e ribeirinhos, enfim, foram se alastrando pelas matas e barrancas dos rios e alcançaram praticamente toda a região Norte do Brasil, do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste, ganhando assim contornos pan-amazônicos; (g) pelo exame detalhado das características físicas e psicológicas do Mapinguari, ele é, na realidade, um complexo mosaico de traços de personagens de narrativas da tradição europeia (semelhante ao Polifemo de Homero e o Olharapo da tradição oral transmontana, por exemplo), e ameríndia (semelhante ao Curupira do litoral e do interior de todo o Brasil, por exemplo), filtrados, parcialmente, pela tradição dos gigantes nordestinos (semelhante ao Pai da Mata e ao Cabelobo, por exemplo); (h) por reunir em si mesmo e unicamente um amplo feixe de traços de variada tradição de gigantes monstruosos, ele se tornou uma personagem singular e definitiva do folclore amazônico, brasileiro e universal.
(I) as narrativas da tradição europeia, com adaptações nordestinas, vieram para a Amazônia durante o ciclo da borracha e se disseminaram entre grupos indígenas com as devidas adaptações locais, tornando-se um mito pan-amazônico;
(II) as narrativas da tradição ancestral europeia, com adaptações nordestinas, e a tradição ancestral indígena se miscigenaram na Amazônia;
(III) as narrativas da tradição ancestral ameríndia se difundiram na Amazônia fortemente influenciadas pelas narrativas ancestrais europeias com adaptações nordestinas;
(IV) independentemente da ocorrência das demais hipóteses, as narrativas da tradição ancestral ameríndia se mantiveram em grupos isolados apesar de que, na locução intercultural, apresentem
tentativas de adaptação.
Vegini (2014) |
O ciclope da Imagem 02 abaixo é uma das personagens dos bestiários medievais inspirados em Plínio e Solinos e seus seguidores. Trata-se de uma representação iconográfica de uma personagem gigante multifacetada, uma espécie de desenho síntese da tradição das narrativas ancestrais. Ele é, a um tempo, uma personagem de um olho só [ciclope ou arimáspio], com boca no peito [blêmio], com hipertrofia auricular [panócio], parecendo ter um único pé às avessas [ciópode e opistópode].
Conforme mostra a Imagem 07 acima, personagens encontradas por von Martius em narrativas da tradição indígena do Amazonas, ou bocarra em sentido vertical, do nariz ao umbigo como a do Quibungo da Baía, semelhante a uma vagina dentada com seu orifício mortalmente perigoso que conduzia ao útero da mãe Terra de que falam Eliade e Kappler272; somente o Mapinguari tinha unhas compridas em forma de garras como as unhas de dez metros do Pai da Mata do Cariri, como as unhas do Bicho-Preguiça e do Macaco-Preguiça dos Karitiana (SPIX e MARTIUS, 1981, p. 136-7; CASCUDO, 1976, p. 187/ nota de rodapé).
O Mapinguari que vive próximo às aldeias Karitiana é o mesmo que vaga por seringais acreanos ou por outras remotas paragens amazônicas? Como compreender esta aparente vasta difusão territorial do temido ogro, este “verdadeiro demônio do Mal”, nas palavras de Câmara Cascudo (2002, p. 222)?
Os efeitos da presença sempre perigosa do Mapinguari continuam sendo sentidos – ou seja, a experiência real neste particular mundo possível (possível, repito, para mim, não para aqueles que o habitam) – pelos Karitiana e pelas populações ribeirinhas em Rondônia, conforme a matéria publicada no jornal eletrônico rondoniaovivo.com, em 8 de outubro de 2014, e discutida por Vegini e Vegini (2015, p. 8). De acordo com o noticiário:
A notícia de que um grupo de catadores de açaí teriam avistado um mapinguari na Reserva Florestal Sumaúma deixou os moradores da Vila dos Pescadores apavorados. Localizada na cabeceira da ponte sobre o rio Jamari, há cerca de 85 quilômetros de Porto Velho, a Vila dos Pescadores é formada por mais de 30 famílias, todas sobreviventes da pesca e da extração do açaí. O fato aconteceu no início do mês de setembro [de 2014], quando um grupo de extrativistas foram [sic] realizar a coleta do açaí no rio Japiim, onde fica localizada a Reserva Sumaúma, próximo a uma grande Serra. De acordo com um dos extrativistas, que prefere não se identificar, essa é uma viagem muito perigosa, pois são cerca de 5 horas de viagem de motor Rabeta para chegar lá. “Na Reserva Sumaúma é onde está a maior quantidade de açaí silvestre, mas por ser uma mata onde ninguém adentrou, ficamos expostos a vários riscos, entre os quais, inúmeras espécies de cobras e onças”, afirma.
Para outro catador que fazia parte do grupo, tudo teria começado quando eles ouviram um grito floresta adentro. “Comecei a imitar o grito e percebi que o som se aproximava de nós. Foi quando começamos a ouvir um forte estralo e de maneira intermitente. Nesse momento, apareceu uma criatura de cor escura e de aproximadamente dois metros de altura, com apenas um olho avermelhado como chamas”, disse.
Assustados, todos deixaram o açaí que tinham colhido e correram para a beira do rio, pegaram o Rabeta e voltaram para uma barraca improvisada que eles tinham feito. Mas ao chegar próximo da barraca, o medo foi ainda maior, quando viram novamente a criatura próximo da barraca. Na mesma hora, todos retornaram para a canoa, ligaram o Rabeta rapidamente e voltaram atemorizados em direção a Vila. “Já estava escuro quando saímos da reserva, sem lanterna e deixamos tudo para trás. A viagem de volta foi mais perigosa, pois não enxergávamos quase nada”, disse um deles.
O susto foi tão grande que alguns deles não conseguiram dormir por alguns dias. A notícia logo se espalhou na Vila e devido ao ocorrido, nenhum extrativista se arrisca a ir mais naquela reserva (Bosco, 2014).
Estavam eles sob efeito de Ayahuasca?
Referências:
BOSCO, João. Mistério - Catadores de açaí afirmam ter visto um Mapinguari. Rondoniaaovivo.com, 7 out. 2014. Disponível em: <http://www.rondoniaovivo.com/noticias/misterio-catadores-deacai-afirmam-ter-visto-um-mapinguari/119282#.VVHsbyHBzGd>. Acesso em: 04 março 2019.
CASCUDO, Luíz da Camara. Geografia dos mitos brasileiros. Global Editora e Distribuidora Ltda, 2015.
VANDER VELDEN, Felipe Ferreira. Realidade, ciência e fantasia nas controvérsias sobre o Mapinguari no sudoeste amazônico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 209-224, 2016.
VEGINI, Valdir; VEGINI, Rebecca; FERREIRA NETTO, Waldemar. O monstruoso Mapinguari pan-amazônico: uma sucessão de adaptações aloindígenas. Porto Velho: Temática, 2014.
VEGINI, Valdir; VEGINI, Rebecca. O gigante monstruoso mapinguari e a solidez dos narratemas da tradição. Revista Sustentabilidade Organizacional, Porto Velho, v. 2, n. 1, p. 1-13, fev.-jul. 2015.
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