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Por Coelho (2003):
Tekã Kuru, um jovem como nós, fez um rapé de tabaco muito forte, o mais forte que tinha. Então, ele tomou o rapé. Pegou o canudo de taboca, botou o tabaco na mão e aspirou. Ficou bêbado e passou um ano na rede, ali deitado. Por isso que hoje em dia o tabaco é forte. Passou um ano curtindo. Tekã Kuru tinha uma esposa. Enquanto ele ficou de porre de tabaco, sua mulher sempre andava para lá e para cá. Até que começou a namorar com outro cara. Ela começou a ir muito ao roçado. Às vezes, quando voltava, trazia um nambu. Botava na caçarola de barro e caía depois na rede. Fazia que dormia e ficava rosnando como se tivesse pesadelo. A mãe dela perguntava:
─ O que é que minha filha tem?
Pegava no punho da rede e balançava. A filha fingia que acordava e fazia que era encantada. Mandava sua mie abrir a panela. A velha abria e encontrava o nambu. A filha fazia que estava estudando o estudo para se pajé. Toda vez que vinha do roçado, aparecia com um macaco, um jabuti e todas aquelas caças. Parece que um dia, depois de um ano dentro da rede, o marido não suportou mais. Levantou, pegou sua arma, flecha e borduna e caminhou atrás da mulher. Encontrou a mulher conversando com outro cara. Tekã Kuru então empurrou a lança nas costas do homem, furou também a mulher. Bateu depois com a borduna até que matou os dois. Quando chegou em casa, a velha estava esperando a filha.
─ É, minha sogra, parece que tua filha tá morta.
A velha correu para o roçado e lá encontrou os dois caídos. Enquanto isso, Tekã Kuru sumiu. Acompanhou ele como sua nova mulher uma prima. Foram andando, andando no mundo, até chegarem em outra aldeia na casa de uma irmã dele. Atou sua rede e contou para a irmã que tinha matado sua mulher. Passou ali uns três meses.
Depois, seguiu para outra aldeia, onde morava outra irmã. Ela estava viúva. Seu marido tinha sido comido por um encantado. Nesse dia, Tekã resolveu partir uma lenha para ajudar sua irmã, que lhe disse: ─ Não, meu irmão, não parte essa lenha não, porque o bicho vem e come a gente.
O irmão não se importou. Pegou o machado e começou a abrir a lenha. A lenha afastava-se sozinha, O homem tentou três vezes abrir a lenha, até que apareceu um homem encantado. Ele pegou a borduna, bateu e firmou com a lança, até matar o encantado. Passado ti m mês, foi para outra aldeia e encontrou outra irmã viúva.
─ Irmão, eu não tenho mais marido. Ontem, a onça comeu ele.
O irmão resolveu pegar essa onça. Perguntou a que horas que ela atacava. A irmã Contou tudinho. Chegava de noite, às doze horas. Quando a pessoa estava dormindo na rede, pegava ela de surpresa e comia.
Então, o Irmão mandou cercar tudinho. Cercou a casa da irmã e mandou ficar lá na rede a mulher dele e a irmã viúva. Ele ficou na porta esperando até as doze horas. Quando quis dar no sono, ele escutou a onça esturrar. Pegou a flecha. Quando viu o vulto do bicho, apertou a flecha e flechou a onça. A onça caiu morta.
Passaram-se mais dois meses. Tekã Kuru seguiu para outra aldeia, onde tinha outra irmã.
Esta, toda vez que tinha um filho, o gavião real levava para seu ninho, numa samaúma grande no mato. Pegava o menino na hora que ela ia dar banho no terreiro. O irmão resolveu pegar o gavião real para salvar seus sobrinhos. Mandou buscar barro e fez uma boneca grande, tipo um menino. Cortou cabelo, colocou no boneco e quando viu o gavião real chegando no pau da samaúma mandou a irmã banhar o boneco no terreiro, como fazia com os filhos.
Assim a irmã fez. Quando viu o gavião voando para pegar a criança, soltou a boneca e o bicho se atracou com o menino, mas não pôde carregar. Pregou os dois pés e ficou enfiado no barro liguento. O irmão veio e meteu o pau, matou o gavião real.
Passaram mais dois meses e o irmão resolveu passear em outra aldeia onde estava sua outra irmã.
─ Não, não vá, não! Lá no meio cio caminho tem um pica-pau que, quando começa a
cantar, ninguém conseguiu sobreviver ao seu canto.
O homem foi assim mesmo. Quando o pica-pau chegou voando, cantando, foi morto pela sua borduna.
Chegou assim na casa de sua irmã. Passados uns meses, resolveu seguir viagem para outra aldeia, visitar urna outra irmã.
─ Não, não vá, não! No meio do caminho tem uma casinha que faz escurecer, quando alguém vai chegando lá.
Ele assim mesmo decidiu ir. Seguiu seu caminho e quando chegou no ponto que sua irmã falava, escureceu. Ele ficou lá debaixo da casinha, atou a rede, convidou sua mulher para deitar, acendeu um pedaço de sernambi para alumiar e escondeu a luz debaixo de urna panela. Quando deu base de doze horas, ele ouviu bater de cima para baixo, descendo, um bicho que comia gente. O bicho vinha descendo e, quando chegou pertinho da casa, o homem abriu a panela, clareou a escuridão e meteu a flecha no animal que caiu, “pof”, no chão.
Conseguiu chegar na casa de sua outra irmã que disse espantada:
─ Como é que você vem chegando aqui? Ali ninguém nunca passou. Ali some mesmo!
O irmão descansou lá uns dias e resolveu continuar seu caminho para visitar outra irmã. Chegou em outra aldeia, onde encontrou sua irmã viúva, o marido morto por um macaco.
Mais uma vez o irmão conseguiu salvar a vida de sua família, matando o macaco preto com uma flechada certeira no peito.
Continuou sua viagem para outra aldeia e enfrentou desta vez um caboré encantado que conseguiu abater com a sua borduna.
Desta aldeia, seguiu viagem para outra aldeia para visitar uma outra irmã. No caminho, enfrentou um bicho encantado com metro e meio de braço, de dois braços. Bateu no calcanhar e então o bicho esmoreceu. Ele meteu o pau, derrubou ele. Matou e continuou o caminho até a casa da irmã.
─ Como é que você chegou, meu irmão?
─ Matei o rapaz, matei o animal!
Após uns tempos, seguiu viagem, como de costume, para outra aldeia. Mas, antes, ouviu conselho de sua irmã:
─ Não vai, não! Lá tem uma pessoa que come fígado de gente.
Assim mesmo o homem viajou. Chegando lá, encontrou sua irmã e seu cunhado animados esperando por ele. Atou sua rede e deitou.
O cunhado disse:
─ Tua irmã vai cozinhar umas bananas. Vamos tomar um banho. Tem um igarapezinho que dá muito bodó. Daquele bodó amarelinho. Vamos pegar um bocado para comer com banana.
Os dois cunhados foram então para o igarapé tomar banho. O irmão sempre com cuidado, observando o cunhado que levava um pau. O homem levou sua borduna e, enquanto mergulhava, continuava olhando com cuidado o seu cunhado.
Em plena claridade do sol, o cunhado pegou o pau para bater nele, mas Tekã Kuru desviou e o cara errou. Tekã foi em direção ao cunhado. Agüentou a borduna e derrubou ele, que foi bater no chão. Pinpinou ele de borduna. Ele começou a gritar. Sua mulher chegou, viu a cena e ficou olhando, esperta. Depois, pegou na saia, começou a dançar, dançar e cantar na língua:
─ He, he, he, he...
Depois Tekã mandou sua mulher matar sua própria irmã, por ser a esposa do homem que já estava morto, o que comia fígado.
A mulher foi e matou sua cunhada. E os dois continuaram sua viagem. Tekã matou assim todos os animais e até a sua irmã e o seu cunhado, aquele que comia fígado. Enfrentara, até então, todos os perigos.
Um dia, em uma de suas viagens, um conhecido seu matou um urubu para ele comer.
Pelou o urubu bem peladinho e convidou Tekã para comer. Dizia que era um gostoso mutum. No começo, Tekã recusou, mas o cara insistiu. Até que ele, valentão, aceitou de comer o urubu. Rasgou a carne bem lá de dentro, tirou um pedaço e comeu. Disse que amargava m oito. Sentiu então q mie ia finalmente morrer.
─ Mulher, dessa vez vou cair.
Passado um mês, Tekã Kuru, que comeu fígado de urubu, morreu.
Shenipabu Miyui - História dos antigos reúne, em uma edição bilíngüe (Kaxinawá-Português), doze narrativas dos mitos de fundação da nação indígena Kaxinawá, que habita a região do Alto Purus, na divisa do Acre com o Peru. O livro é fruto da pesquisa de professores Kaxinawá, que percorreram as diversas terras de seu povo com o objetivo de criar uma escrita que preservasse a sua memória. Esse trabalho chega agora às mãos de todos os interessados, trazendo um precioso material de reflexão sobre uma parte até então encoberta, desvalorizada e pouco difundida de nosso diversificado patrimônio histórico-cultural.
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Referências:
Organização dos Professores Indígenas do Acre
COELHO, Maria do Carmo Pereira. As narrações da cultura indígena da Amazônia: lendas e histórias. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (tese), 2003.
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