O canibalismo é um problema. Em muitos casos, a prática tem suas raízes em ritos e superstições, não na gastronomia, mas isso nem sempre ocorre. No século XVII, um dominicano francês observou que os caraíbas tinham noções extremamente bem definidas dos méritos relativos de seus inimigos. Como poderíamos esperar, os franceses eram deliciosos, de longe os melhores, o que não é nenhuma surpresa, mesmo levando-se em conta o nacionalismo. Os ingleses vinham a seguir, apraz-me dizê-lo. Os holandeses eram sem graça e indigestos, e os espanhóis tinham tantos nervos que quase não constituíam uma refeição, mesmo quando fervidos. Tudo isso soa tristemente como gula.
Patrick Leigh Fermos, 'Gluttony'¹
Hoje to com um post que, pelo menos para quem se interessa em antropologia e comida (como eu) é mais que interessante, é uma citação entre as páginas 50 a 59 do livro Comida - Uma história de Felipe Fernandez, peguei o livro da biblioteca de onde estudo e logo pensei em publicar essa parte, falando sobre o canibalismo, e a comida em si.
Agora era oficinal. Os antropófagos, seres humanos que se alimentavam de carne humana, realmente existiam. Durante muito tempo considerados personagens de fábulas, e há muito objeto de rumores, agora eram noticiados como um fato, sustentado pelo peso incontroverso da corroboração do testemunho visual de praticamente toda a tripulação de segunda expedição transatlântica de Colombo. [...].
Perguntamos as mulheres, que eram prisioneiras dos habitantes, que tipo de pessoas eram esses ilhéus, e elas responderam: "Caraíbas." Logo que souberam que nós detestávamos aquela espécie de gente graças a sua prática cruel de comer carne humana, ficaram felizes. (...) Elas nos contaram que os homens caraíbas usam-nas com uma crueldade quase inacreditável; e que eles comem os filhos que elas lhes dão, só criando aqueles que tiveram com as pessoas nativas. Os inimigos masculinos que eles conseguem aprisionar ainda vivos são trazidos para casa e tornam-se um banquete, e os que são mortos em batalha também são comidos depois que a luta termina. Afirmam que a carne humana é tão gostosa que nada pode a ela se comparar no mundo; e isso é bastante evidente, já que, dos ossos humanos que encontramos nas casas, tudo que se poderia roer já tinha sido roído e nada tinha sobrado, a não ser aquilo que era demasiado duro para comer. Em uma das casas, encontramos um pescoço humano sendo cozido em uma panela. (...) Quando os caraíbas tomam meninos como prisioneiros de guerra, removem seus órgãos sexuais e os engordam até que cresçam. Então, quando desejam fazer um grande banquete, matam-nos e comem, pois dizem que a carne das mulheres e dos jovens não é tão gostosa. Três meninos que tinham sido mutilados dessa forma, vieram correndo ao nosso encontro quando visitamos as casas.
Em sua viagem anterior, Colombo tinha ouvido mal a palavra aruaque "cariba" e a transmitido como "caniba". Assim, os termos "canibal" e "caribenho" derivam da mesma palavra.
Muitos relatos semelhantes se seguiram, e à medida que a exploração européia se expandia os relatos de canibalismo se multiplicavam. Os canibais encontrados por Ulisses ou relatados por Heródoto, Aristóteles, Estrabão e Plínio ganharam credibilidade a cada nova descoberta. A "Descoberta do Homem" do renascimento também incluiu a descoberta do homem como devorador de homens. [...] Dizem que os tupinambás consumiam seus inimigos "até a última unha". O relato que Hans Staden fez do éríodo em que esteve cativo deles, na década de 1550, foi um bestseller de suspense de dar frio na espinha pela maneira como o sacrifício do próprio autor em um banquete canibal ia sendo sempre adiado. Sua descrição do ritual canibal foi ameaçadoramente memorável. A vítima tinha de aturar os insultos das mulheres e cuidar do fogo onde seria cozida. Primeiro, ela era abatida com um golpe que lhe fazia saltar os miolos. Depois as mulheres
raspam sua pele completamente e a deixam bem branca e tampam seu ânus com um pedaço de madeira para que nada se perca. A seguir um dos homens... corta os braços e as pernas acima do joelho. Depois quatro mulheres levam os pedaços que foram cortados e correm com eles ao redor das cabanas com gritos de alegria. (...) As entranhas são guardadas pelas mulheres, que as fervem e fazem uma canja grossa, que chamam de "mingau". Essa canja é bebida por elas e pelas crianças. Devoram os intestinos e a carne da cabeça. Os miolos, a língua e tudo o que for comestível são dados para as crianças. Quando tudo isso acaba, todos vão para casa, levando sua porção consigo. (...) Eu estava lá e vi tudo isso com meus próprios olhos.
À medida que o século foi chegando ao fim, as cenas de membros humanos cortados como em um açougue para serem grelhados, ou de mulheres canibais sugando sangue e abocanhando entranhas humanas, deram vida a muitas das gravuras populares de Theodore De Bry de cenas de viagens na América. [...]
No fim da Idade Média e, com força descrente, nos séculos XVI e XVII o canibalismo era um atributo extremamente útil a ser imputado o inimigo de alguém, pois, assim como a sodomia e a blasfêmia, era classificado como uma ofensa contra a lei. Com isso, os europeus podiam, impunemente, atacá-los, escravizá-los, subjugá-los à força e sequestrar sua propriedade. Algumas vezes, o "mito de comer homens" era uma fantasia recíproca: investigadores brancos ficaram surpresos ao descobrir que eles próprios eram suspeitos de canibalismo por "nativos" que também consideravam a prática um horror. [...]
Apesar disso, [...] o número de casos observados crescia, a premissa de que o número de casos observados crescia [...].
[...] muitas histórias referiam-se a casos estranhos que ocorreram na sociedade ocidental em oposição às normas vigentes: aquilo que poderíamos chamar de canibalismo "criminoso", praticado com um desejo consciente de ultrajar. [...]
Mesmo na história moderna do mundo ocidental, uma forma de canibalismo social foi identificada, praticada e, por muito tempo, permitida pela lei. Não tão raramente, sobreviventes de naufrágos e acidentes aéreos conseguem permanecer vivos à custa da carne dos companheiros mortos, in extremis, chegam a tirar a sorte para sacrificar a própria vida para matar a fome de seus camaradas. [...]
Nunca foi suficiente simplesmente afirmar que "comer gente está errado". Se é contra a natureza, isso não parece uma sansão forte o bastante quando as pessoas estão famintas. Se parece anormal para alguns, representa a normalidade para outros. O canibalismo sempre teve admiradores. Às vezes, como no caso dos defensores do costume do mar, eles apelam para a necessidade: Em outras palavras, justificam o canibalismo representando a carne humana como uma fonte de alimento, em última instância moralmente indistinguível de fontes de alimento diversas.Em outros contextos, a defesa baseia-se no relativismo cultural e no reconhecimento de que, em algumas culturas, a carne humana é mais do que alimento: seu consumo é justificável não porque ela sustenta vidas individuais, mas porque alimenta a comunidade, invoca os deuses ou atrai poderes mágicos.
[...] O ensaio de Montaigne "Sobre Canibais" é muitas vezes citado como exemplo de como a autopercepção ocidental foi revolucionada pelos encontros culturais da conquista da América e da "Descoberta do Homem" do Renascimento. Ele sugeriu que a moralidade do canibalismo não era pior do que o convencionalismo que permitia aos europeus se matar uns aos outros com toda convicção de farisaísmo, apesar das vantagens da educação e da tradição filosófica cristãs.[...]
[ Parágrafo pulado]
Os canibais e seus críticos sempre concordam com uma coisa. O canibalismo não é neutro: ele afeta o comensal. Os críticos afirmam que o efeito é depravador, como no caso dos companheiros de Simbad, que tão logo provavam a comida canibal começavam "a agir como maníacos insaciáveis" e "após umas poucas horas bebendo" se transformavam "em pouco menos que selvagens". Os canibais, por outro lado, acham que a prática é uma forma de auto-desenvolvimento. Na lógica canibal, o canibalismo pe um exemplo claro de um fato universal: a comida reinterpretada como algo mai que sustento físico - a substituição da nutrição por valor simbólico ou poder mágico como motivo para comer; ou seja, a descoberta de que a comida tem um significado. Depois do ato de cozinhar, talvez esta seja a segunda grande revolução na história da comida. Diríamos segunda em importância, já que, como sabemos muito pouco sobre o tema, suas origens podem ser até mais antigas que as do cozimento. Nenhum povo, por mais faminto, escapou de seus efeitos, pois não existe hoje uma só sociedade que coma apenas para viver. Em todo o mundo, comer é um ato culturalmente transformador - às vezes de uma forma mágica. O ato de comer possui sua própria alquimia; ele transforma indivíduos em sociedade e doença em saúde; (me intrometendo, na citação do Autor, saúde em doença também né?!) muda personalidades; pode pode sacralizar atos aparentemente seculares; funciona como um ritual; transforma-se em um ritual; pode fazer com que a comida seja divina ou diabólica; pode liberar energia; pode criar laços; pode significar vingança ou amor e pode proclamar a identidade. Uma mudança tão revolucionária quanto qualquer outra na história de nossa espécie ocorreu quando o ato de comer deixou de ser meramente prático e passou a ser também um ritual. Dos canibais, aos homeopatas e admiradores de comidas saudáveis, todos aqueles que comem buscam alimentos que, a seu ver, irão polir o caráter, ampliar os poderes, prolongar a vida.
Muito bom post, esse assunto gera vários sentimentos, se é que me entende haha
ResponderExcluirHahha valeu! Sim, por isso a Gastronomia me fascina...
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